Algo de
novo acontece na música popular brasileira. Algo de ancestral se realiza. Algo
de permanente se concretiza... A poesia cantada mantém sua vitalidade em nossa
cultura. Estou falando da rica mistura de elementos expressivos trazida ao
palco pela trupe O Teatro Mágico, que esteve ontem, de 19 de maio de 2012 no
Palco da Fundição Progresso, Centro do Rio.
O que
temos diante de nós? Um show musical, essencialmente. Mas um evento diferente
de tudo aquilo a que estamos acostumados... Temos uma sonoridade que se
aproxima, às vezes, da bossa nova. Mas não espere encontrar aqui banquinho e
violão. Temos momentos de explosão roqueira, mas não espere encontrar cabeludos
fazendo o recinto estremecer com acordes que desafiam o limite entre a música e
ruído... Não, o que temos é uma estética fundada na presença simultânea dos
mais variados recursos sonoros e visuais. Tudo a serviço de uma poética forte e
expressiva, que explora temas que nos tocam mais profundos dilemas da alma
humana.
O som e a imagem estão juntos,
mas a palavra cantada é o cimento de qualquer performance... A poesia
transmitida pela voz humana, que atualiza o texto e lhe confere a expressiva
fugacidade do momento. O mestre Paul Zumthor já dizia que a performance é
quando a transmissão e a recepção do texto poético ocorrem no mesmo instante. Há
modos distintos de se criar e compartilhar poesia. Mas este é, sem dúvida
alguma, o que encontra uma ressonância maior junto ao público nos tempos em que
vivemos. Pode ser que tudo se dê pelo fato de que este público se sinta fazendo
parte do ato. O show permite que a plateia cúmplice cante junto, aplauda,
vaie... enfim, participe. Assim, de certa forma, cada um de nós divide a
responsabilidade de legar o tesouro da tradição poética para as próximas
gerações.
Esta
rica confluência de recursos faz jus ao adjetivo que acompanha o nome desta
banda... não se trata de um teatro qualquer, ele é mágico. Aliás, nunca é
demais lembrar que a existência e a importância deste teatro não me foi
revelada por um ser qualquer, mas por uma fada, frágil e infinita gota de vida
que me faz sorrir sempre que me lembro...
Os
textos instigam, provocam, incomodam, fazendo jus à rica tradição literária que
se filia aos antigos trovadores provençais, passa pelas cantigas medievais
portuguesas, acompanha em paralelo a história da poesia “letrada” do
classicismo ao modernismo, chegando a novos momentos de revelação no contexto
da cultura audiovisual. Sim, se tantos séculos houve em que a poesia cantada
não era devidamente considerada, hoje é tudo diferente... Assim, diante da
presença de Fernando Anitelli no palco, não há como não ouvir o eco da voz
indignada de Renato, o trovador solitário, que fazia da cena cultural da
Brasília dos anos 1978/79 algo mais que um vazio. Poderia dar outros exemplos. Outros
nomes, outras imagens, outras mensagens também saltam dos abismos da memória...
A arte cavalheiresca do guerreiro Djavan talvez já diga muito do que pretendo
evocar neste momento.
Mas Fernando não está só... Sua
voz rege um conjunto cuja estética se explica pelo ato simultâneo. O Teatro
Mágico é uma banda que namora uma ampla diversidade de estilos musicais, mas
não se limita ao som. Enquanto a música nos envolve, o espetáculo se desvela, conferindo
nova dignidade à antiga e desgastada arte do circo. Sim, agora me vem à mente
que o show todo começa com o antológico vocativo “respeitável público”. Em
breve, haverá sobre o palco engolidores de fogo, palhaços e bailarinas
extraordinárias que flutuam sobre as cabeças boa parte do tempo em que estamos
aqui... Nos vídeos a que tive acesso antes, era apenas uma, mas hoje há duas
compondo acrobacias que completam o sentido dos textos... Se fadas e anjos
existem? Bem, acho que todas as dúvidas podem cair por terra diante do que
estamos vendo.
Para não deixar margem à dúvida, O
Teatro Mágico maneja com habilidade outro recurso precioso, a maquiagem de
caracterização, por meio da qual os artistas vestem máscaras provisórias e
encarnam a ficção que nos aproxima mais do sentido da vida.
A rapidez e a perícia com que são
executados os números de circo contribui para que a atenção do público não se
afaste do principal: a força expressiva de sua poética. Bem, mas antes de
analisar alguns textos das canções, vale uma observação interessante quanto ao
título do show... Não pode ter sido gratuita a escolha do título... “A
sociedade do espetáculo”. Muito mais do que isso. É uma provocação, mesmo. Um
elemento que enriquece a trama tecida pela trupe no sentido de nos provocar e
nos levar para além do óbvio.
De Theodor Adorno a Jean Baudrillard,
passando por Guy Debord, o século XX viu florescer toda uma tradição de crítica
filosófica e sociológica fundada no ceticismo quanto aos rumos que a
civilização toma num tempo em que as pessoas dão mais importância à aparência das
coisas, em vez de estarem dispostas a ter uma visão mais comprometida com a
percepção das realidades mais profundas. Neste contexto, grande parte da
produção cultural de nosso tempo se realiza em termos de aceitar o jogo do
mercado, aceitar as encomendas da indústria... produzir apenas o que será
consumido. Isso faz com que a arte verdadeira seja desterrada. Não há lugar
para ela numa república fundada em princípios tão sórdidos. Adorno chamou de
sombrios os tempos em que viveu. Chegou a sugerir que em tempos assim a poesia
seria impossível, no sentido de ser impossível pretender que alguém ainda preste
atenção ao que diz um poema. Os demais, que vieram mais tarde, ainda que livres
do espectro do nazismo, contra o qual lutou o sábio alemão, de um modo ou de
outro, concordaram com o que ele dissera.
Bem, somos tentados a pensar que
em tempos de total frivolidade, em que o espetáculo de celebridades falsas, pinçadas
de dentro da “casa mais vigiada do país”, a poesia esteja fadada ao
esquecimento... Ledo engano... O Teatro
Mágico aceitou o desafio. Hoje, veicula poesia de qualidade dentro do contexto
de um espetáculo que se vale dos mais diversos recursos cênicos. O resultado é
impressionante. O Teatro é avesso a uma recepção distraída. Ou seja, impossível
ficar ali sem prestar atenção ao que dizem os textos das canções. Impossível
ficar comendo o mingau pelas beiradas. Impossível não ser empurrado para dentro
do caldeirão.
Um exemplo disso encontramos na
canção “O mérito e o monstro”, que discute os dilemas a que é submetido o ser
humano em seu cotidiano de trabalho sem prazer...
O metrô parou
O metro aumentou
Tenho medo de termômetro
O metro aumentou
Tenho medo de termômetro
Tenho medo de altura
Tenho altura de um metro e tanto
Me mato pra não morrer
Tenho altura de um metro e tanto
Me mato pra não morrer
Minha condição, minha condução
Meu minuto de silêncio
Os meus minutos mal somados
Sadomasoquismo são
Meu minuto de silêncio
Os meus minutos mal somados
Sadomasoquismo são
Meu trabalho mais que forçado
Morrendo comigo na mão
Morrendo comigo na mão
[Pra dilatarmos a alma
Temos que nos desfazer
Pra nos tornarmos imortais
A gente tem que aprender a morrer
Com aquilo que fomos
E aquilo que somos nós
http://www.youtube.com/watch?v=PkrEsvyRBcc
Para quem acha que a arte
inaugura um universo ficcional para que o público possa se entreter, virando as
costas para a realidade, o Teatro nos joga na cara o tempo todo que a ficção é
a melhor forma de mergulharmos em profundidade nos dilemas reais, os mais ocultos
segredos da existência, os dilemas da condição humana. O texto desta canção,
cujo título já é uma alusão provocativa a um clássico da literatura de terror,
nos dá um exemplo muito claro disso.
Assim, enquanto os humanos
mortais “se matam para não morrer”, o artista busca os caminhos que o levem
além. Senão, vejamos, o que significa para cada um de nós os minutos e horas
intermináveis perdidos no metrô, no ônibus, no trem, ou até na barca, pra quem
mora no Rio, Niterói ou São Gonçalo? Um tempo infértil que pagamos como tributo
a nossos patrões, sem sermos remunerados por isso. Ainda têm o descaramento de
nos cobrarem passagem, e cara.
Bem, é justamente pelo metrô que
o texto da canção começa a questionar o cotidiano de despersonalização,
desumanização, que o trabalho cotidiano nos impõe... E a saída é encontrada no
jogo lúdico de nos reinventarmos, já que “Pra dilatarmos a alma / Temos que nos
desfazer”, pois somente deixando de ser (o que somos até agora) podemos almejar
ser algo mais, ir além.
Bem, no começo deste texto eu
falei da longa tradição dos trovadores, falei em Renato Russo. Tantos outros
nomes poderiam ser citados, numa teia que vem tecendo a certeza de que por meio
da canção podemos aspirar a uma vida melhor, podemos conquistar uma condição de
sermos humanos de modo mais pleno. Acho que bastou o exemplo que dei, dentro do
rico repertório do Teatro, para mostrar que nem tudo está perdido. Não que
Adorno estivesse errado. Pelo contrário, sua provocação foi da maior
importância. Ela nos fez despertar para a realidade de que se temos que
conviver com a sociedade do espetáculo, então que seja possível rechear este
espetáculo de poesia.
Sim, a MPB tem um longo futuro à
sua frente. Assumir, e não escapar ao diálogo com as novas linguagens, ao
encontro com a visualidade, pode ser um bom caminho. Assumir, e não fugir, de
um encontro com as mais remotas tradições de nossa complexa formação cultural,
pode e vai apontar muitos bons caminhos. Fico a imaginar o dia em que Antelli e
seu povo inventarem de incorporar elementos de estética africana, ao mesmo
tempo em que estiverem incorporando mais plenamente elementos de sonoridade
percussiva... A quem acha que estamos longe disso, o show da Fundição Progresso
realiza um encontro da trupe do Tetro com uma dupla de Mcs cariocas. O objetivo
é claramente manifesto por Fernando Antelli: protestar contra o preconceito que
o funk sofre por uma parcela significativa da população.
E que venha o futuro.
Bibliografia sugerida:
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e
Terra, 2003.
_______. Mínima Moralia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue
ed., 2008.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
2000.
ZUMTHOR. A letra e a voz. São Paulo, Companhia das Letras,
1993.
________. Performance, recepção e leitura. São Paulo: EDUC,
2000.