domingo, 15 de julho de 2012

Sarau: a busca da medida exata entre trabalho coletivo e talento individual






Esta semana, no dia 11 de julho, tive oportunidade de assistir à abertura da temporada do Sarau no bar Miranda, na Lagoa. Volto com uma impressão muito boa e gostaria de comentar alguns dos aspectos mais importantes disso.
Aureo Gandur, Daniel Chaudon, Fred Sommer, Gugu Peixoto, João Guarizo, Taís Alvarenga, Tomaz Lenz e Toni Ferreira. Não sei se dei conta de todos os nomes. Acho que sim. Um grupo de jovens, cujos nomes, expostos assim em rigorosa ordem alfabética, nos conduzem a um nome em coletivo, o projeto Sarau, que já possui um DVD na praça e promete muito mais. A razão da minha escolha pela ordem alfabética? Destacar o fato de que eles têm como proposta compartilhar igualmente o espaço do show. Deve ser destacada, ainda, a participação especial de Dani Black, cujo nome não está associado ao projeto de modo permanente.
Pode parecer que estou ocupado com um assunto secundário. Isso é uma ilusão. Um dos graves problemas que enfrentamos em nossos dias é o individualismo elevado à potência máxima que se pratica nos mais diferentes momentos do cotidiano. O mundo das expressões artísticas não escapa à regra. Nele, também tem valido um grosseiro “farinha pouca meu pirão primeiro” que empobrece a todos. Será resultado da inculcação em todos nós dos padrões ideológicos do capitalismo neoliberal, que se beneficia ao máximo da fragmentação de grupos e da desagregação de qualquer tipo de coesão social? Ou será que certa dose de individualismo é inerente à condição humana?
                Bem, não estou aqui para solucionar este enigma da existência. Vim para falar que nem tudo está perdido. Ainda prevalece um sentido de coesão em pequenos grupos, mesmo no  campo da arte. Mais precisamente, no rico território da MPB, que sempre teve no fenômeno da parceria um de seus aspectos centrais.
                O bar possui este nome em homenagem à pequena notável e se propõe como espaço aberto para a música brasileira. Oferece condições adequadas a um espetáculo musical, apesar de ter mantido uma varanda aberta, talvez com a proposta de oferecer um espaço adequado para que os fumantes não interfiram no clima geral. Porém, do lugar onde fiquei era possível ouvir um contínuo burburinho vindo deste lugar, algo que não contribuía para o bom andamento das coisas. A dispersão, velha inimiga dos bons momentos de nossa música, ali encontrava um espaço para se infiltrar.
Afinal, o espetáculo se insere no que se costuma classificar como “camerístico”, oferecendo-se para uma recepção concentrada, que esteja atenta aos pequenos detalhes, interessada em desfrutar da riqueza de recursos técnicos de que se valem os artistas. Com efeito, a despeito de percorrer certa variedade de ritmos, poucas vezes a bateria, conduzida com competência por Tomaz Lenz, chegou a imprimir uma pegada  que conduzisse o público a dançar. O silêncio na plateia se  interrompia apenas nas manifestações de aplauso ou quando o público cantava junto... A bem dizer, a presença de um público cúmplice sempre é um dado extremamente positivo, que facilita as coisas, deixando o artista jovem mais à vontade. Não que a vaia também não tenha sua contribuição. Todo grande artista cresce com ela. Gil e Caetano estão aí para mostrar.
No palco, não existe qualquer hierarquia entre os participantes do Sarau. Ainda que, do lado de fora, eu tenha lido em algum lugar que aquele seria um espetáculo da “banda” Sarau, um dos rapazes se apressa, logo ao início do show, a esclarecer que eles não são uma “banda”, mas  um “bando”. Não explicou, mas deixou implícito o que queria dizer. Bastava olhar para o palco, que se percebia: nenhum deles é o maior, há um revezamento constante no microfone  e diante dos holofotes, a cada vez que um se apresenta, parte dos outros espera sentado no chão, em atitude de total despojamento e informalidade. Em suma, a palavra “bando” que poderia ser interpretada como sendo uma insinuação de desordem, funciona para celebrar a prática da presença coletiva e o respeito de cada um ao momento em que o outro brilha. Uma palavra que remete a um modelo de atuação libertária e fraterna. Um modo de atuar que não se encaixa nos padrões do mainstream.
                Teríamos então um grupo de jovens loucos, a fazer do questionamento do sistema sua principal razão de estar junto e fazer música¿ Não, exatamente. Já disse que estes aspectos de questionamento ao mainstream ficam implícitos. As canções praticam o lirismo mais solto possível, sem prévios compromissos com nenhuma proposta de atuação social explícita.
                Mas, vamos por partes. Logo, logo os meninos estarão no palco e vou comentar algumas de suas canções, bem como suas performances diante do público presente, em  sua maioria estudantes universitários iniciados em música, como foi possível constatar na fila de entradaUma preocupação preliminar me assolou: estaria eu diante de um nicho de mercado, um balaio fechado apenas aos sócios integrantes, algo assim? Já sentado em minha mesa, meio longe do palco, a voz de Gilberto Gil animava o ambiente, antes de começar a apresentação. Ele, o grande mestre em transpor fronteiras e desafiar barreiras, frequentando simultaneamente  vários dos nichos que o mercado cria para facilitar seus negócios... Um bom começo. Além disso, notei que na propaganda do patrocinador, um abraço de Milton Nascimento em Maria Gadú assumia um caráter simbólico. A nova geração se reconhece como herdeira de uma rica tradição. E parece disposta a honrá-la.
No telão, à minha frente, um desfile de imagens do Rio, com destaque para o recorte esbelto das montanhas. A metáfora da cidade mulher, evocando a Garota de Ipanema. Bem, não é novidade para ninguém que a atitude cool que caracteriza a presença de palco de quase todos os varandistas possui nítidos paralelos com a bossa nova. O mesmo se pode dizer da sonoridade que ecoa de sua voz e de seus instrumentos, das soluções melódicas simples, mas sem concessões banalizantes. Mais do que nunca, num espetáculo como este, nos sentimos na presença de algo que merece a alcunha que dei ao meu blog – as bossas mais novas.
Não quero com isso dizer que eles vieram reeditar a bossa nova. Muito menos que são os únicos a terem condições de se considerarem legítimos herdeiros do movimento  liderado por Tom Jobim e João Gilberto. Afinal, a Tropicália e o Clube da Esquina, para dar apenas dois exemplos notórios, já fizeram isso antes. De um modo geral, podemos dizer mesmo que a BN foi um divisor de águas e marca sua presença em tudo o que hoje se costuma definir pela sigla MPB.
Já que falei no Clube da Esquina, houve um momento do espetáculo em que o Daniel Chaudon me lembrou muito o Beto Guedes – ele simplesmente parou o show para aprimorar a afinação dos instrumentos, imprimindo a este momento tal nota de informalidade que parecia estar em casa, tocando com um bando de amigos... Em bando, eles estavam. Só que havia um público diante deles. Mas não houve embaraço algum, uma vez que tudo se resolveu com rapidez.
Deixarei a quem estiver mais habilitado que eu a tarefa de uma análise do espetáculo do ponto de vista musicológico. O que busco neste texto é destacar algumas considerações sobre a atitude poética, mais do que somente os textos poéticos, deste “bando”. Pois como sabem, a poesia não se faz apenas com as palavras. Tenho feito o possível para que minhas aulas deixem isso claro. A poesia é uma modo de interagir com o mundo, que encontra no texto sua tradução, mas se espalha a todos os detalhes do cotidiano.
Agora, vamos ao show. E vamos conscientes de que, em se tratando de comentar a poética de textos da canção popular, não se pode deixar de lado o fato de que tais textos não são concebidos para leitura, mas para audição. Os aspectos sonoros\musicais interferem decisivamente no resultado, da mesma forma como a atitude dos intérpretes sobre o palco, seu desempenho vocal, gestos e tudo o mais... em suma, sua performance. Aliás, se vocês retomarem o fio da meada deste texto, verão que já estou tecendo considerações sobre a performance do grupo desde o começo.
Bem, a apresentação foi aberta pela canção “A chave”, de Gugu Peixoto. Nada mais adequado, tendo em vista que para eles a canção é joia digna de ser lapidada com cuidado artesanal, para ser depois conservada num baú de preciosidades. Mas, vejamos o que diz o texto...

Eu te dei a chave
Que abre o peito da minha cidade
E esqueci da cópia
Para abrir caso você esqueça
Porta fechada
Estamos no domínio de um lirismo afetivo que afirma a busca da entrega total, sem rodeios. A interpretação intimista conduz a um clima de alcova. Uma chave para a relação a dois, como também uma chave para tudo o que viria a seguir, no decorrer do show. Um tema recorrente, que se apresenta sempre com nova face na poesia de todas as épocas e todas as culturas.
Agora, podemos reparar em outra possível leitura do texto. E se este "tu" a que a canção alude formos nós? Caberia a cada um receber a chave e abrir a porta, como também correr o risco de não conseguir mais abrir. Cair nas redes do texto e se deixar levar pela paixão do poeta/compositor/intérprete...
Talvez apareça quem questione o que estaria esta geração trazendo de novidade. A esses, eu diria, ainda que provisoriamente, que a novidade se encontra na maneira espontânea de expor as verdades da alma. Afinal, já se foram os tempos em que somente o artista de vanguarda estaria por merecer atenção dos críticos e analistas de estética. Sem contar que a história da arte mostra que os movimentos de vanguarda nem sempre resultam de uma operação planejada. Frequentemente, os novos vêm primeiro à tona, para depois testarem seus rumos, em soluções inovadoras.
Estamos falando de novos artistas que buscam soluções para exprimir suas verdades dentro do contexto de uma civilização fortemente musical, como a brasileira. Entre nós, já houve quem testasse de tudo nas décadas anteriores. Chegou o momento do artista jovem simplesmente ser deixado em paz, para desfrutar liberdade de expressão e da riqueza de ritmos e harmonias conquistadas pelos que os precederam.
Interessante é que há críticos de tal modo imbuídos de uma visão evolucionista, que acabam olhando de má vontade para os novos talentos que afloram sem pedir licença. Leio em texto escrito por Gilberto Mendes e 1968 e compilado por Augusto de Campos em seu "Balanço da Bossa e Outras Bossas" (1974) algo a respeito do "falecimento da bossa nova". Ora, não fazia ainda dez anos que o movimento de renovação começara. 
Algo similar ao que acontece com a poesia escrita, território no qual, depois de tantas lutas, de tantos territórios explorados, hoje contamos com uma imensa gama de possibilidades de criação. De tal modo que os poetas mais jovens até possuem o direito de palmilhar novos caminhos. Mas não devem, de maneira alguma, ser cobrados por isso. Deixá-los em liberdade para criar já é o bastante. Afinal, de que terá valido lutar tanto, abrir tantos caminhos, para que viesse a máquina de consumir modismos com suas cobranças e transformasse a liberdade em nova prisão...

Assim, não chega a ser novidade que a nota de melancolia da canção “Sai de casa”, de Taís Alvarenga fere a lira numa corda já bastante conhecida em nosso cancioneiro, como se pode ver:

Amor, existe tanto pra gente
Por que será que você
Não quer saber o que eu tenho pra te dar?
Ai, é que eu só tenho o presente
E mesmo assim somos nós
O mesmo sol todo dia a me acordar
O chamado de amor não correspondido, que tantos bons frutos já rendeu na produção de outras gerações, ganha corpo e personalidade na voz de uma artista que cresce mais a cada dia. Pode ter sido impressão, mas a Taís do show desta quarta-feira já não é a mesma dos vídeos a que assisti tantas vezes. Existe algo de novo, talvez uma colocação de voz mais ousada. O fato é que a artista tem, percebe-se nitidamente, estudado muito e investido em seu próprio crescimento. Acredito que o mesmo se possa dizer do restante do grupo
O fato é que esta geração entra em cena num momento privilegiado, no qual a tecnologia nos permite ver e ouvir as canções quantas vezes quisermos. O que não falta são pequenos artefatos eletrônicos que podem ser conectados à rede. De tal sorte que basta linkar no youtube, que ouvimos as canções e as repetimos quantas vezes quisermos. Além disso, também é um privilégio ter nascido em país de tão sólida tradição em canção popular, no qual desde muito tempo já nos habituamos a conviver com poemas cantados de alta qualidade.
Taís sabe que não é fácil uma voz feminina se afirmar na MPB, tendo em vista a rica tradição com a qual terá que dialogar o tempo todo. Já falei há pouco de Maria Gadú, madrinha informal deste movimento, quase membro deste "bando", já que as referências a seu nome surgem constantemente. Com toda a qualidade de seu canto, ela é apenas mais uma "Maria", que se junta a várias outras. Para não alongar a digressão, lembremos de Bethânia, de Maria das Graças (mais conhecida com Gal), de Maria Rita, filha de uma estrela maior, que não era Maria, mas que merece a referência - Elis. Pronto, acho que é o bastante, por ora.
O show prossegue com outros bons momentos, como o belíssimo metapoema cantado “O jogador”, de Áureo Gandur e Fred Sommer, que faz por merecer um texto à parte neste blog, a canção “Linda Rosa”, que já ganhou um público maior na interpretação de Maria Gadú,e outros, incluindo interessantes releituras, como a de “Geni e o Zepellin”, de Chico Buarque ou mesmo “Não aprendi a dizer adeus”, de Leandro e Leonardo. Aliás, a respeito dessa última, pode-se dizer que Daniel Chaudon deu novo alento ao texto, na medida em que apresenta uma versão livre dos excessos de floreio vocal dos sertanejos. Um versão enxuta, dentro da proposta que predomina em toda a apresentação do grupo.

Sem querer esgotar o tema, está lançado o desafio. A todo momento, surgem artistas jovens ou se revelam outros talentos esquecidos. A turma do Sarau parece ter testado a combinação perfeita de trabalho coletivo e respeito ao talento individual de cada um. Uma boa pedida para os tempos em que vivemos. A poesia cantada no Brasil tem dimensões continentais, como a própria pátria que a abriga. Aguardem que outros textos virão.+++

Bibliografia Sugerida:

BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Sâo Paulo: Geração Editorial, 1996.
CAMPOS, Augusto (org.) Balanço da Bossa e outras bossas. Sâo Paulo: Perspectiva, 1974.
FINNEGAN, Ruth. "O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?" In: MATOS, Cláudia; Medeiros, Fernanda; TRAVASSOS, Elizabeth (org.) Palavra Cantada. Ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro, 7Letras, 2008.
LACERDA, Chicco. Gilberto Gil: partículas em suspensão. Niterói: EdUFF, 2002.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companha das Letras, 1993.

domingo, 20 de maio de 2012

O mérito do espetáculo


                Algo de novo acontece na música popular brasileira. Algo de ancestral se realiza. Algo de permanente se concretiza... A poesia cantada mantém sua vitalidade em nossa cultura. Estou falando da rica mistura de elementos expressivos trazida ao palco pela trupe O Teatro Mágico, que esteve ontem, de 19 de maio de 2012 no Palco da Fundição Progresso, Centro do Rio.
                O que temos diante de nós? Um show musical, essencialmente. Mas um evento diferente de tudo aquilo a que estamos acostumados... Temos uma sonoridade que se aproxima, às vezes, da bossa nova. Mas não espere encontrar aqui banquinho e violão. Temos momentos de explosão roqueira, mas não espere encontrar cabeludos fazendo o recinto estremecer com acordes que desafiam o limite entre a música e ruído... Não, o que temos é uma estética fundada na presença simultânea dos mais variados recursos sonoros e visuais. Tudo a serviço de uma poética forte e expressiva, que explora temas que nos tocam mais profundos dilemas da alma humana.
O som e a imagem estão juntos, mas a palavra cantada é o cimento de qualquer performance... A poesia transmitida pela voz humana, que atualiza o texto e lhe confere a expressiva fugacidade do momento. O mestre Paul Zumthor já dizia que a performance é quando a transmissão e a recepção do texto poético ocorrem no mesmo instante. Há modos distintos de se criar e compartilhar poesia. Mas este é, sem dúvida alguma, o que encontra uma ressonância maior junto ao público nos tempos em que vivemos. Pode ser que tudo se dê pelo fato de que este público se sinta fazendo parte do ato. O show permite que a plateia cúmplice cante junto, aplauda, vaie... enfim, participe. Assim, de certa forma, cada um de nós divide a responsabilidade de legar o tesouro da tradição poética para as próximas gerações.
                Esta rica confluência de recursos faz jus ao adjetivo que acompanha o nome desta banda... não se trata de um teatro qualquer, ele é mágico. Aliás, nunca é demais lembrar que a existência e a importância deste teatro não me foi revelada por um ser qualquer, mas por uma fada, frágil e infinita gota de vida que me faz sorrir sempre que me lembro...
                Os textos instigam, provocam, incomodam, fazendo jus à rica tradição literária que se filia aos antigos trovadores provençais, passa pelas cantigas medievais portuguesas, acompanha em paralelo a história da poesia “letrada” do classicismo ao modernismo, chegando a novos momentos de revelação no contexto da cultura audiovisual. Sim, se tantos séculos houve em que a poesia cantada não era devidamente considerada, hoje é tudo diferente... Assim, diante da presença de Fernando Anitelli no palco, não há como não ouvir o eco da voz indignada de Renato, o trovador solitário, que fazia da cena cultural da Brasília dos anos 1978/79 algo mais que um vazio. Poderia dar outros exemplos. Outros nomes, outras imagens, outras mensagens também saltam dos abismos da memória... A arte cavalheiresca do guerreiro Djavan talvez já diga muito do que pretendo evocar neste momento.
Mas Fernando não está só... Sua voz rege um conjunto cuja estética se explica pelo ato simultâneo. O Teatro Mágico é uma banda que namora uma ampla diversidade de estilos musicais, mas não se limita ao som. Enquanto a música nos envolve, o espetáculo se desvela, conferindo nova dignidade à antiga e desgastada arte do circo. Sim, agora me vem à mente que o show todo começa com o antológico vocativo “respeitável público”. Em breve, haverá sobre o palco engolidores de fogo, palhaços e bailarinas extraordinárias que flutuam sobre as cabeças boa parte do tempo em que estamos aqui... Nos vídeos a que tive acesso antes, era apenas uma, mas hoje há duas compondo acrobacias que completam o sentido dos textos... Se fadas e anjos existem? Bem, acho que todas as dúvidas podem cair por terra diante do que estamos vendo.
Para não deixar margem à dúvida, O Teatro Mágico maneja com habilidade outro recurso precioso, a maquiagem de caracterização, por meio da qual os artistas vestem máscaras provisórias e encarnam a ficção que nos aproxima mais do sentido da vida.
A rapidez e a perícia com que são executados os números de circo contribui para que a atenção do público não se afaste do principal: a força expressiva de sua poética. Bem, mas antes de analisar alguns textos das canções, vale uma observação interessante quanto ao título do show... Não pode ter sido gratuita a escolha do título... “A sociedade do espetáculo”. Muito mais do que isso. É uma provocação, mesmo. Um elemento que enriquece a trama tecida pela trupe no sentido de nos provocar e nos levar para além do óbvio.
De Theodor Adorno a Jean Baudrillard, passando por Guy Debord, o século XX viu florescer toda uma tradição de crítica filosófica e sociológica fundada no ceticismo quanto aos rumos que a civilização toma num tempo em que as pessoas dão mais importância à aparência das coisas, em vez de estarem dispostas a ter uma visão mais comprometida com a percepção das realidades mais profundas. Neste contexto, grande parte da produção cultural de nosso tempo se realiza em termos de aceitar o jogo do mercado, aceitar as encomendas da indústria... produzir apenas o que será consumido. Isso faz com que a arte verdadeira seja desterrada. Não há lugar para ela numa república fundada em princípios tão sórdidos. Adorno chamou de sombrios os tempos em que viveu. Chegou a sugerir que em tempos assim a poesia seria impossível, no sentido de ser impossível pretender que alguém ainda preste atenção ao que diz um poema. Os demais, que vieram mais tarde, ainda que livres do espectro do nazismo, contra o qual lutou o sábio alemão, de um modo ou de outro, concordaram com o que ele dissera.  
Bem, somos tentados a pensar que em tempos de total frivolidade, em que o espetáculo de celebridades falsas, pinçadas de dentro da “casa mais vigiada do país”, a poesia esteja fadada ao esquecimento... Ledo engano...  O Teatro Mágico aceitou o desafio. Hoje, veicula poesia de qualidade dentro do contexto de um espetáculo que se vale dos mais diversos recursos cênicos. O resultado é impressionante. O Teatro é avesso a uma recepção distraída. Ou seja, impossível ficar ali sem prestar atenção ao que dizem os textos das canções. Impossível ficar comendo o mingau pelas beiradas. Impossível não ser empurrado para dentro do caldeirão.
Um exemplo disso encontramos na canção “O mérito e o monstro”, que discute os dilemas a que é submetido o ser humano em seu cotidiano de trabalho sem prazer...
O metrô parou
O metro aumentou
Tenho medo de termômetro
Tenho medo de altura
Tenho altura de um metro e tanto
Me mato pra não morrer
Minha condição, minha condução
Meu minuto de silêncio
Os meus minutos mal somados
Sadomasoquismo são
Meu trabalho mais que forçado
Morrendo comigo na mão

[Pra dilatarmos a alma
Temos que nos desfazer
Pra nos tornarmos imortais
A gente tem que aprender a morrer
Com aquilo que fomos
E aquilo que somos nós

http://www.youtube.com/watch?v=PkrEsvyRBcc

Para quem acha que a arte inaugura um universo ficcional para que o público possa se entreter, virando as costas para a realidade, o Teatro nos joga na cara o tempo todo que a ficção é a melhor forma de mergulharmos em profundidade nos dilemas reais, os mais ocultos segredos da existência, os dilemas da condição humana. O texto desta canção, cujo título já é uma alusão provocativa a um clássico da literatura de terror, nos dá um exemplo muito claro disso.
Assim, enquanto os humanos mortais “se matam para não morrer”, o artista busca os caminhos que o levem além. Senão, vejamos, o que significa para cada um de nós os minutos e horas intermináveis perdidos no metrô, no ônibus, no trem, ou até na barca, pra quem mora no Rio, Niterói ou São Gonçalo? Um tempo infértil que pagamos como tributo a nossos patrões, sem sermos remunerados por isso. Ainda têm o descaramento de nos cobrarem passagem, e cara.
Bem, é justamente pelo metrô que o texto da canção começa a questionar o cotidiano de despersonalização, desumanização, que o trabalho cotidiano nos impõe... E a saída é encontrada no jogo lúdico de nos reinventarmos, já que “Pra dilatarmos a alma / Temos que nos desfazer”, pois somente deixando de ser (o que somos até agora) podemos almejar ser algo mais, ir além.
Bem, no começo deste texto eu falei da longa tradição dos trovadores, falei em Renato Russo. Tantos outros nomes poderiam ser citados, numa teia que vem tecendo a certeza de que por meio da canção podemos aspirar a uma vida melhor, podemos conquistar uma condição de sermos humanos de modo mais pleno. Acho que bastou o exemplo que dei, dentro do rico repertório do Teatro, para mostrar que nem tudo está perdido. Não que Adorno estivesse errado. Pelo contrário, sua provocação foi da maior importância. Ela nos fez despertar para a realidade de que se temos que conviver com a sociedade do espetáculo, então que seja possível rechear este espetáculo de poesia.
Sim, a MPB tem um longo futuro à sua frente. Assumir, e não escapar ao diálogo com as novas linguagens, ao encontro com a visualidade, pode ser um bom caminho. Assumir, e não fugir, de um encontro com as mais remotas tradições de nossa complexa formação cultural, pode e vai apontar muitos bons caminhos. Fico a imaginar o dia em que Antelli e seu povo inventarem de incorporar elementos de estética africana, ao mesmo tempo em que estiverem incorporando mais plenamente elementos de sonoridade percussiva... A quem acha que estamos longe disso, o show da Fundição Progresso realiza um encontro da trupe do Tetro com uma dupla de Mcs cariocas. O objetivo é claramente manifesto por Fernando Antelli: protestar contra o preconceito que o funk sofre por uma parcela significativa da população.
E que venha o futuro.

Bibliografia sugerida:

ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
_______. Mínima Moralia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue ed., 2008.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
ZUMTHOR. A letra e a voz. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
________. Performance, recepção e leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

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